20 de out. de 2022

lembranças aleatórias não relacionadas com a infância

Lembrança #10

Lembro de uma festa ou rave ou balada que eu ajudei um amigo a organizar num tipo de sítio eu acho. Estava separado do meu namorado na época e já meio que namorando com um outro cara que lembrava um pouco ele, que dizer, ato falho ou hábitos antigos são os mais difíceis de abandonar.

Lembro de chegar na festa com meu novo boy e ajudar meu amigo com várias coisas da festa e, ao mesmo tempo, evitar ficar cara a cara com meu ex. Deixei o boy novo dançando e disse que precisava ajudar meu amigo na organização da festa e ele aceitou e eu realmente estava ajudando até que, certo momento, meu ex já um tanto bêbado me puxa para conversar e pergunta o que eu estava fazendo com aquele cara que não tinha nada a ver comigo e lembro de um diálogo tenso que terminou com cada um indo para seu lado com algum tipo de ferida para lamber.

Lembro de acabar a festa e eu me oferecer para dar carona para algumas pessoas que moravam perto incluso vocês sabem quem. Lembro de chegar na casa dele e ele me pedir para descer, lembro de nos beijarmos e nos chuparmos e nos amaramos numa laje e ele dizendo que eu era dele e ele era meu mas talvez fosse apenas o álcool falando, lembro de voltar para festa, pegar me ficante e ir embora e, dias depois, terminar com ele para voltar com meu ex, quem nunca..

Lembrança #11

Lembro desse mesmo ex e de uma das N vezes que terminamos e voltamos e de como eu ficava buscando pela cidade traços dele, buscando sua trilha e pequenos detalhes que ia juntando para montar um quebra cabeça que nunca se completaria. De ouvir dele aqui e ali e de uma vez, chegar na casa de um amigo para descobrir que ela acabara de sair e encher a cara porque eu não aceitava, a gente quando é novo sempre acha e enche a cara para esquecer mas depois fica velho e acaba enchendo a cara para esquecer também mas não o ex mas o tempo que joga contra e nos mostra os ponteiros cada vez mais rápidos.

Lembrança #12

Levar ele para casa de carro, a estrada aberta e escura, apenas as luzes do painel e a música tocando feito algum efeito sonoro vindo de algum mundo diferente e ele com a cabeça deitada em meu colo - nunca antes de entrarmos na estrada, sempre ao entrarmos, como se ali naquele breu feito de asfalto de lanternas fosse o lugar onde eu e ele poderíamos enfim repousar um no outro - e eu tentando trocar as marchas sem incomodar ele e olhos fixo na estrada e um sentimento de completo e amor e posse de mim que não cabia naquele caminho feito de escuridão e luzes falsas e eu com um sentimento de que aquele era meu mundo e de que eu poderia morrer ali mesmo porque seria bom porque ele estaria comigo e ele em seu sono em meu colo era algo palpável, rastreável, vivo e que me dizia que a vida era possível e que amar ao menos ali era bom, um pedaço de estrada e música e um amor no colo é tudo que se precisa para se feliz...

19 de out. de 2022

lembranças de uma infância que eu talvez tive

Lembrança #6

Meu pai adorava aviação, talvez por isso eu tenha acabado trabalhando nela anos a fio. Lembro de me levar ao Campo de Marte, tirar fotos com os aviões, de festas de fim de ano em Congonhas, saía com um saco de brinquedos. Lembro de irmos em Congonhas (não havia Guarulhos na época) apenas para ver os aviões pousarem e ele me dizia os nomes e modelos de cada um deles. Lembro que ele me iniciou no modelismo, montávamos os kits Revell juntos e depois eu passei a montar sozinho e sempre aviões.

Havia algo mágico nos aviões, talvez o único campo de interesse comum entre ambos já que outros eram intangíveis, os aviões eram um campo seguro mesmo que voassem. 

Lembro uma vez em Ubatuba, a família em férias alojada numa casa próxima do aeroporto local, privilégios de quem trabalhava com aviação, lembro das marmitas do Jorge que era nossa alimentação diária, minha mãe nunca foi afeita a culinária, eram aquelas marmitas de metal que vinham num tipo de gancho de metal umas em cima das outras, em cada uma um prato da refeição.

Lembro de um dia meu pai me chamar, íamos dar uma volta só que seria de avião, pegamos o monomotor com um dos pilotos locais e fomos de Ubatuba até São José dos Campos, bate e volta, lembro do avião mais parecer um aquário com asas, o barulho do motor e do vento e da sensação de que não havia chão e que meus pés estavam flutuando no ar.

Lembrança #7

No mesmo lugar acima, lembro de um trem fantasma, desses de parque pequeno, de praça, aqueles do tipo pague para entrar, reze para sair, nunca um trem fantasma teve um nome tão apropriado.

Lembro de meu pai, enquanto duraram nossas férias, estar vestido sempre com um chinelo de dedo feito de algum tipo de fibra de palma ou algo assim, uma bermuda cáqui que ele prendia à cintura usando uma cordinha para horror da minha mãe.

Lembro de irmos no trem, não lembro muito bem do brinquedo em si mas sim de meu pai, ao final, perguntar para mim se eu havia sentido algum choque ao que respondi que não, nenhum. Ele insistiu, encafifado pois ele havia sentido mas respondi que não até que finalmente ele fez a conexão, seu chinelo estava molhado e, ao colocar as mãos na barra do carrinho para segurar e com algum fio fujão desencapado, fechou o circuito e então, os choques, lembro dele rindo e minha mãe pasma.

Lembrança #8

Lembro do natal, natais, em casa, árvore e enfeites e a espera pelo Noel que não podia ser visto ou não deixaria os presentes. Na manhã seguinte, as coisas materializavam e eu acreditava que o Noel havia passado e recompensado meu bom comportamento.

Lembro tempos depois já desconfiar que esse papo de Noel era fake news e, um natal, depois de pedir um certo brinquedo e intuir que o bom velhinho era na verdade cria da casa, ter descoberto no guarda-roupa o presente e desfeito as ilusões minhas de de meus pais afinal, não são os filhos meros conduites para os sonhos dos pais?

Lembrança #9

Lembro da criatividade do meu pai, coisa que herdei dele, uma capacidade de fazer aliterações e tiradas rápidas, Wans diz que eu sou ele e quando ficar velho, serei ele sem tirar nem por.

Lembro dele ser de uma cultura imensa e essa bagagem lhe permitia brincar com praticamente tudo desde verbos, coisas banais e coisas importantes. Lembro dele falar (e minha mãe odiar) que ia C.A.G.A.R e eu ficava completamente sem entender nada e apenas recentemente me caiu a ficha do que ele ia fazer, assim era ele.

18 de out. de 2022

obrigado, presidente

Obrigado, presidente!

Por me fazer ter vergonha de minha bandeira, das cores do meus país, de ser brasileiro, de morar aqui, de ser gay, de ser alguém, de estar vivo, de estar onde estou.

Obrigado, presidente!

Pelo ódio, pela raiva, pela ignorância, pela intolerância, pelo preconceito, pelas pedras que colocou em nossas mãos, pelos palavrões que colocou em nossas bocas, pela luta constante para ver quem é o pior, por trazer de volta o monstro em nós, por nos tornar feios de novo, nunca fomos belos de verdade, só disfarçávamos muito bem usando a maquiagem do social e politicamente correto, por nos fazer ver a figura grotesca no espelho que tínhamos coberto, por nos fazer lembrar do gosto de sangue, por nos fazer andar de quatro de novo.

Obrigado, presidente!

Por ser imbrochável, somos uma nação de viagras, um país de paus duros, um povo priápico, ereto eternamente em gozo esplêndido ao som do mito e luz do podre profundo, por ser nosso deus, nosso mito, nosso compasso capenga moral, bastião da moral e família, por nos fazer cidadãos de bem, trabalhadores, pais de família, não importa que estupremos nossas mães e filhas, espanquemos nossas mulheres e cuspamos em nossas putas, o cidadão de bem precisa ser protegido.

Obrigado, presidente!

Por nos fazer ficar sem ar, por nos fazer ficar sem vacina, sem remédio, sem cova, sem comida, sem teto mas esse é o preço que é baixo perto da facada infeliz, por nos fazer de otários todo santo dia, por nos fazer de idiotas toda hora, por nos tratar feito incompetentes, feito crianças, feito bebês, por rir da nossa cara, fazer piada com nossa morte, rir de nossa desgraça e por ser esse mito.

Obrigado, presidente!

Por me fazer entender que o Brasil não gosta de bixa, nem de lésbica, nem de travestis, nem de queer, nem de não-binários, nem de pessoas trans nem de nada que não seja do espectro cis normativo, por me fazer entender que não sou nada, não sou ninguém e que minha existência é um erro, por não nos estuprar porque não merecemos, melhor estuprar seu cercadinho porque lá esse é o sonho deles.

Obrigado, presidente!

Por finalmente me fazer enxergar quem me odeia, por me fazer ver quem sempre riu de mim e quer me ver morto, por fazer caírem as máscaras, por me fazer bloquear na vida real e digital pessoas que se diziam minhas amigas e amadas, por me fazer ver que eu vivia em um covil de lobos, por me fazer acordar e encarar a realidade, por me fazer ficar apenas com as pessoas que realmente importam, por me fazer acreditar no que realmente importa, por me fazer lembrar o que realmente importa, por me fazer viver o que realmente importam por me fazer importante, por importar a decência que eu havia esquecido, por importar a felicidade pela qual eu preciso sempre lutar, por importar a luta que eu achei ter ganho, por me fazer sair de um torpor e olhar a cara da realidade por mais amarga que ela seja.

Obrigado, presidente!
Obrigado...

17 de out. de 2022

falta de bom censo

Fomos visitados pelo Censo 2022.

Visitados não seria a palavra certa pois a moça do censo ficou na portaria e foram interfonando nos apartamentos perguntando quem estaria disponível para responder algumas perguntas, não sei dizer quantos moradores responderam mas eu, como estava em casa, atendi de pronto ao chamado do dever social afinal, um censo serve, em tese, para mapear a população e suas condições de vida e sociais para que, novamente em tese, o governo possa atender da melhor forma possível as demandas da sociedade ou, no caso do atual governo, quantos somos, onde estamos e como vivemos para que decida qual forma mais rápida e eficiente de nos eliminar.

E é justamente nesse ponto que desejo chegar.

A recenseadora fez as perguntas de praxe, nada de novo, aquelas de sempre, quantos quartos, quantos banheiros, aparelhos domésticos, carro, grau de escolaridade, renda mensal e tudo mais que serve para ter uma foto clara de quem somos, como se eles não soubessem no centavo tudo isso.

O que mais me deixou pasmo e indignado foi não haver recorte sobre identidade de gênero e/ou orientação sexual, nada, absolutamente nada ou seja, ao informar que moramos em duas pessoas aqui a recenseadora assumiu implicitamente que somos heterossexuais pois não havia esse recorte na pesquisa.

Existem muitas maneiras de apagamento, desde as mais horrendas envolvendo extermínio e genocídio mas, como essa costuma 'pegar mal' mesmo ainda sendo pregada e executada mundialmente, a gente que prefere fazer de conta que não vê, até as mais discretas e silenciosas e que, de certa forma, são até piores porque, na primeira opção pelo menos o ódio é declarado e escancarado enquanto na outra, disfarçado de motivos mais elevados, o apagamento vai matando aos poucos, silenciosamente e fazendo com que as pessoas sintam que estão lentamente deixando de existir ainda que estejam vicas.

A não inclusão do recorte LGBTQIA+ no Censo é essa segunda forma.

Ao não fazer esse recorte, o atual governo deixa claro que essa parcela da população inexiste, reforça e segue o apagamento iniciado em 2019 com o desmonte de politicas sociais voltadas para o público LGBTQIA+ seja na área de cultura, onde a questão de gênero e sexualidade e diversidade é vetada em qualquer edital público; educação, onde falar de educação sexual, diversidade e preconceito é proibido sob o olhar vigilante dos pais conservadores e saúde onde o desmonte de políticas de atendimento e prevenção a DSTs e HIV/AIDS estão por um fio.

O sonho Bolsonarista, não se iludam, é colocar a todos nós num grande forno, ligar e depois enterrar as cinzas, como eles não podem fazer isso então partem para a segunda opção, retirar de nós tudo que seja necessário para nossa sobrevivência e, como parte desse plano, apagar nossa existência, negar que estamos aqui.

Não sermos parte do Censo deixa claro que, para o atual governo, somos desnecessários e podemos ser esquecidos, ao não termos esse recorte, nossa identidade é apagada e quaisquer esperanças de políticas sociais para as pessoas LGBTQIA+ desaparece afinal, o resultado das pesquisas vai demonstrar que o Brasil é país de machos imbricháveis, não tem viado no Brasil!

Negando num processo tão importante e complexo como um Censo a identidade e orientação de cada um nós não normativos, o governos está em nossas caras, rasgando nosso direito de existir e reconhecendo que, no plano de país atual, não temos lugar ou espaço, somos não-pessoas, não podemos nem devemos declarar nossa sexualidade e identidade porque elas não existem no plano Bolsonarista.

Não podermos, num Censo, declarar quem somos de fato é algo horrível e atroz, mostra o quanto, para esse governo, não representamos nada, como somos indesejados e temos pouca importância, não é preciso perguntar pela sexualidade porque no padrão Bolsonarista só existe uma, todas as demais são aberrações e devem banidas ou colocadas em guetos, jamais vistas na luz do dia.

Esse é um apagamento que dói muito porque nos rouba a cidadania e a individualidade, ao não reconhecer essa parte essencial de nossas vidas e que nos define sim como pessoas, o recado está claro!

Não existimos e, se não existimos, não há necessidade de se preocupar conosco e, se não é preciso se preocupar, não faz mal se morrermos porque serão mortes inexistentes, iguais aquelas do COVID que Bolsonaro tanto demente...

14 de out. de 2022

quem vai pagar pelos corações partidos?

quem vai pagar
quem vai pagar?
pelos corações partidos, pelos partidos, pelos pedaços de carne e veias que ficam no chão enquanto as vidas seguem seu rumo no meio de gente que não sabe que precisa entender que a perda é feita de perdão?

há medos e medos, medos que não tem nome e outros com tantos nomes que nem sabemos qual usar. quando botamos nomes criamos laços e laços são inquebráveis, só pela morte que um laço que fecha todos os laços. a vida é feita de laços, uns a gente desfaz, outros a gente faz e não desfaz, uns outros a gente faz e preferia não ter feito e a gente vai virando esse emaranhado sem fim ou começo.

falei de lembranças essa semana e elas são seres independentes, são além do que sabemos e entendemos, ela tem vida própria e se comportam de maneira aleatória e por isso nos assaltam e nos deixam sem ação. já notaram como elas se acumulam mas não damos fé?

não sabemos o quanto temos delas até que algo as dispara e faz reviver em nós, por nós, santo santo santo, senhora dona do universo rogai por nós!

quem lembra
lembra
que a lembrança é a única coisa que fica

13 de out. de 2022

lembranças de uma infância que não sei se tive

Tive umas recordações essa semana não sei se via sonho ou flashes durante o dia disparados por alguma música, filme, foto ou situação e qual a diferença entre um e outro mesmo? Não seriam as recordações e memórias pequenos flashes de luz que guardamos, a luz viaja rápido, tão rápido que deve ser capaz de gravar muita coisa em nossa mente mas, somos incapazes de recuperar tudo porque não operamos na mesma velocidade, estamos lentos, a luz não, somos presos a momentos que a luz nem mesmo considera de tão rápida mas, que ficam eternizados sem sabermos e depois, do anda, disparados por uma situação aleatória, inundam nossas vidas.

Lembrança #1

Meu pai tinha uma fita K7, sim essas mesmas que hoje são vintage hipster, de um coral alemão chamado Fischer-Chöre da década de 60 e ativo até hoje. Nesse K7, eles cantavam alguns clássico da música popular internacional além de músicas típicas alemãs, lembro de ouvir essa fita seguidas vezes porque ele simplesmente amava, tinha uma queda por grandes orquestras como Ray Coniff e Paul Mauriat entre outros. Lembro de tentar entender as letras e fazer aliterações com base nos sons mas até hoje lembro claramente das melodias e faixas dessa fita como se tocassem diretamente me minha mente. Havia algo de épico nas músicas, algo de místico como se ao tocar a fita algo de sobrenatural penetrasse o mundo material e eu acreditava que aquelas vozes deveriam vir desse lugar e um sentimento de encanto me preenchia, escuto até hoje.

Lembrança #2

Meu pai amava fotografia, deve ser por isso que eu também amo. Já pararam para pensar que boa parte de nossos gostos e costumes vem de nossos pais? Lembrei de uma foto em especial, eu segurando um telefone (com fio, sou dessas época) e sorrindo no melhor estilo criança viada. Vestia um camisa de gola rolê e um colete de lã, com certeza foi minha mãe pois ela era a estilista da família. Estava ao lado de um carrinho-bar e sorria com meus dentes de leite. Não sei onde foi parar essa foto, deve estar perdida junto com outras coisas nas paredes do tempo mas é uma foto que registra um momento, não lembro porque a foto foi tirada mas é uma memória doce eu acho, já era gay mas numa época que isso nem tinha nome ainda.

Lembrança #3

Eu não gosto de carnaval, fato. Talvez a origem desse trauma esteja na tentativa frustrada de meus pais de me fantasiar e levar para um baile não sei ao certo já que essa lembrança é meio turva. Lembro de que me fantasiaram de Zorro, não sei porque mas foi essa e, quando estávamos para sair de casa, eu meio que travei e não quis ir. Não tenho uma lembrança clara de acabamos indo ao baile de carnaval ou se meu pânico desanimou meus pais e acabamos não indo mais mas, sei que foi a última vez - ou quase - que fui em um baile de carnaval. Não sei dizer ao certo se a vergonha era estar de Zorro ou estar fantasiado mas, lembro de ao sair, ver uns garotos na rua e eu acho que eles fizeram alguma piadinha e isso me travou de não ir, enfim, era isso.

Lembrança #4

Não gosto de futebol e, como a lembrança acima, talvez a origem do trauma seja uma tentativa frustrada de meu pai de me levar a um jogo. Não lembro bem qual foi a partida mas lembro que foi no Pacaembu e de estarmos na arquibancada. Lembro de meu pai sentado ao meu lado e eu olhando para o campo sem entender nada do que estava acontecendo. Não lembro de qualquer reação dele ou mesmo do que aconteceu depois mas, até onde sei, foi a última vez que pisei num estádio para ver um jogo, acho que meu pai já sabia que seu filho não lhe daria orgulho nesse departamento e muito menos em outros e por isso, nunca mais insistiu, eles sempre sabem os pais, sempre sabem.

Lembrança #5

Tive um affair no ginásio, sim sou dessa época. Era um tempo de descoberta, não era hoje em que tudo está ali disponível online e você tinha de descobrir as coisas por si e aos poucos. Tinha essa garoto, mesma idade e que tínhamos começado a descobrir nossos corpos sem saber direito o que fazer e como fazer. Uma vez, ele me chamou até sua casa e eu fui certo de iria gozar, nessa época não havia possibilidade de amorzinho, era algo fora de cogitação e nem mesmo sabíamos como lidar com isso, não tínhamos estrutura e informações para tanto. Quando cheguei, ele me levou até a sala que estava meio na penumbra, apenas uma nesga de luz passando pelas cortinas e caindo diretamente ao chão onde algumas almofadas e um cobertor jaziam calados. Sentamos ali e ficamos naquela penumbra que abraçava nosso desejo e nosso sexo porque era o único lugar onde saberíamos existir e ali nos amamos de forma terna e cuidadosa, poucas vezes me senti tão bem e completo, era um ninho improvisado num mundo que nos expulsara sem ao menos nos deixar entrar.

11 de out. de 2022

faz o pedido

Estamos (mal) acostumados e ter na porta de casa tudo entregue com rapidez e eficiência, viramos uma sociedade de pedidos, uberizada, ifoodizada, applizada, não sabemos mais como pedir algo presencialmente e que não permita conhecer em qual passo está o pedido e rastreamento da entrega.

Pouco nos importa se, para termos tudo em mãos, uma, duas ou cem pessoas precisem trabalhar quase em regime de escravidão para que isso aconteça, não tem importância se o entregador não teve tempo de comer nada, se o Uber está rodando a mais de doze horas, se as dark kicthens fucionam sem fiscalização, se os entregadores precisam esfolar até o talo para entregar no prazo e pouco importa se ele tem de tocar a campainha e esperar, esperar e esperar até que sua majestade, o cliente, decida aparecer com cara de quem não está nem aí, para receber o pedido.

Se não conseguimos conceber um mundo sem internet, tente pensar num mundo sem entregadores, consegue? Imagine ter de ir pessoalmente comprar as coisas e ter de programar seu dia de forma a fazer caber a comida, o mercado, a feira, a farmácia e tudo mais que hoje, com um toque, você faz magicamente aparecer na porta de casa.

E não apenas essas coisas do dia a dia mas sexo e relacionamentos também. Se é possível entregar pizzas e compras, porque não seria possível entrega sexo e amor afinal, são apenas mais duas mercadorias e, se assim são, podem ser entregues.

Viramos uma sociedade de urgências via aplicativos, se falta bebida pedimos, se falta, comida, pedimos, se acabou o papel, pedimos, se acabou o amor e o sexo, pedimos. Os aplicativos de sexo e namoro são apenas isso, uma subdivisão dos aplicativos de compras e comida, a urgência é a mesma, precisamos de sexo e amor tanto quanto de comida de álcool e onde há necessidade, há oportunidade.

Terceirizamos nossos desejos e anseios a algoritmos que nos conhecem melhor que nossas mães, não adianta querer pedir algo diferente, o algoritmo prende a gente na zona de conforto, já conhece nossos paladares, sabe nossas vontade e basta um click para realizar!

E os entregadores viraram parte desse fetiche consumista numa relação que nada fica devendo a escravidão, a casa grande virou condomínio e a senzala hoje veste capacete e tem logomarca nas costas, legalizada, disfarçada de oportunidade e empreendedorismo para não dar tão na cara. O entregador virou o fetiche escravocrata, está lá para suprir a necessidade material e a fisiológica também basta ver a quantidade de vídeos pornô sobre o tema, é mesma fetichização do senhor/escravo, de fazer do prestador de serviço um objeto do qual se pode dispor como bem entender já que o preço está pago.

O mesmo vale para os apps de sexo e namoro, o outro virou um artigo a ser vendido, cobiçado, é preciso ter marketing e vender caso contrário não tem saída, igual aos entregadores, viramos fetiches de nós mesmos ao expormos nossos corpos e desejos nos apps buscando maior exposição feito pavões, a melhor plumagem vence.

Passamos a tratar nosso sexo e desejo e amor como entregas, clicou, chegou, é assim que funciona e depois de entregue, pedimos o próximo, a liberdade que deveria ser celebrada pelo sexo livre, sem culpa ou cobranças, a possibilidade de conhecer gente nova e celebrar a descoberta foram substituídas pela rapidez, igual aos pedidos de comida, queremos os corpos a um click de distância, deu match tem de estar em cinco minutos na porta de casa, nada é para depois, tudo é agora, o momento em construção morreu.

Não nos interessa saber como as coisas são feitas desde que estejam a um minuto de distância, não importa se alguém vai morrer no processo desde que o pedido chegue rápido e intacto, o sexo virou um rastreamento sem fim e o amor um pedido sem rastreamento. Vivemos na dependência e ansiedade da chegada do pedido como se fosse o retorno do messias, o pedido seja ele qual for vai salvar o dia, vai nos fazer alegres e nos fazer sorris, celebremos a modernidade mesmo que ele seja construída com cadáveres de pessoas que não importam, ao menos não para nós afinal, não tem problema que uns ou outros morram para que o pedido chegue, a vida é assim, selvagem...

lembranças aleatórias não relacionadas com a infância

Lembrança #10 Lembro de uma festa ou rave ou balada que eu ajudei um amigo a organizar num tipo de sítio eu acho. Estava separado do meu nam...